Double Fantasy continha “Beautiful Boy (Darling Boy)”, uma música de alento para o filho Sean, de cinco anos — posteriormente, Paul McCartney consideraria esta uma das melhores canções já escritas pelo antigo companheiro de Beatles. Também constava do álbum Woman, uma ode às mulheres — e que se tornaria o primeiro single lançado após sua morte inesperada, ocorrida por volta de 22h50 de 8 de dezembro.
Em suas últimas horas de vida, John e Yoko receberam em seu apartamento no edifício Dakota, em Nova York, a fotógrafa Annie Leibovitz para uma sessão de fotos para a revista Rolling Stone. Na sequência, gravaram uma entrevista de quase duas horas de duração para um grupo de entrevistadores: Dave Sholin, Laurie Kaye, Ron Rummel e Bert Keane.
Ao longo da conversa, Lennon falou dos Beatles, de sua relação com Yoko, da rotina em casa, dos cuidados com Sean e do prazer de voltar a compor.
Na sequência, o casal seguiu para o estúdio para trabalhar na composição da canção “Walking On Thin Ice”. Ao retornar para casa, Lennon, de 40 anos, foi assassinado a tiros por Mark David Chapman, um fã obcecado para quem ele havia autografado uma cópia de Double Fantasy por volta das 16h40.
Quando foi alvejado, Lennon carregava nos braços uma cópia da fita master da música que havia acabado de ser gravada — ele na guitarra, ela no vocal. Em frente ao Dakota, no Central Park, foi construído o memorial Strawberry Fields em sua homenagem. E uma inscrição no asfalto marca o local exato onde ele tombou baleado.
Leia a seguir trechos da transcrição da conversa, traduzidos livremente para o português e selecionados por temas.
“Quando não estamos gravando, eu me levanto por volta das seis. Vou à cozinha, preparo uma xícara de café, tusso um pouco, fumo um cigarro. Os jornais chegam às sete. Sean se levanta às 7h20, 7h25. Eu supervisiono o café da manhã dele — não preparo mais, enjoei disso, mas me certifico de saber o que ele está comendo. Yoko, se não estiver muito, muito ocupada, pode passar pela cozinha a caminho do escritório, onde eu preparo um expresso para ela descer bem de elevador.
Fico na cozinha até umas nove horas, quando o Sean já tomou o café da manhã e ele e a babá, Helen [Seaman], estão decidindo o que fazer durante o dia. Eu garanto que ele assista à PBS e não aos desenhos animados com comerciais — eu não me importo com desenhos, mas não deixo ele assistir aos comerciais. Então, se ele for assistir a alguma coisa de manhã, vai ser Vila Sésamo.
Eu amo comerciais como forma de arte. Acho que os melhores diretores estão lá — não fazendo filmes, eles estão fazendo comerciais. Mas essa repetição constante… açúcar, açúcar, açúcar, hambúrguer, hambúrguer, hambúrguer… Eu tentei deixar isso de lado por um tempo e ele não consegue evitar, mesmo que a gente converse sobre isso, ele não consegue evitar querer as coisas que no fundo ele não precisa.
Depois, o Sean e a babá vão para algum lugar fazer alguma coisa, e eu volto para o meu quarto — é o quarto de dormir, mas tem tudo lá, instrumentos, discos. Eu costumava dizer: ‘Se você não consegue fazer na cama, não consegue fazer em lugar nenhum’. Eu sou meio como o [fundador da revista Playboy] Hugh Hefner, é como se a cama controlasse tudo.
Aí, se eu quiser, eu ligo para ver o que a Yoko está fazendo lá embaixo. Porque temos um interfone que liga o andar de cima ao de baixo [onde ela passa o dia trabalhando]. Se o dia não estiver muito corrido, podemos nos encontrar para almoçar. Se não, e se eu não tiver nada para fazer fora de casa, volto à cozinha ao meio-dia para garantir que o Sean almoce bem”.
E fico com ele enquanto ele come, mesmo que eu não coma. E aí a coisa continua assim, e ela ainda está no escritório. Depois do almoço, ele geralmente vai fazer alguma coisa com a babá. E aí eu tenho — talvez das 13h às 17h — um tempo só para mim, para fazer o que eu quiser. Ficar em casa, sair, ler, escrever, o que for. Às 17h, 17h30, começo a olhar em volta para ver se o Sean voltou. Às 18h, jantamos — geralmente a Yoko ainda está no escritório. Às 19h: banho do Sean. Minha vida gira em torno do Sean.
Às sete e meia, geralmente tem alguma coisa infantil passando na TV. Deixo ele assistir se eu estiver por perto, porque quando os comerciais começam, eu só aperto o interruptorzinho que muda para o rádio. Não me importo se ele assiste sem ouvir os comerciais; é diferente. Das sete e meia às oito, ele assiste a alguma coisa. Eu o levo para o quarto dele. Dou um beijo de boa noite. A babá provavelmente lê uma história para ele. Ele está na cama às oito.
Aí ligo para o andar debaixo perguntando: ‘O que você está fazendo aí embaixo? Você ainda está aí?’. Se eu tiver sorte, talvez ela suba e a gente faça alguma coisa, mas ela é viciada em trabalho — às vezes volta lá para cima às dez da noite para tirar umas duas horas de descanso. E depois recomeçar a trabalhar à meia-noite, porque está sempre ligando para a Costa Oeste, ou para a Inglaterra, ou para Tóquio, ou para algum lugar esquecido por Deus que está em um fuso horário diferente do nosso. E esse é um dia normal.
É um prazer para mim ficar em casa. Eu sempre fui caseiro; acho que muitos músicos são. Você compõe e toca em casa de qualquer maneira. Ou, quando eu queria ser pintor — quando eu era mais jovem — eu estava sempre em casa. Ou escrevendo poesia: era sempre em casa.”
“Eu me considero um sortudo [como pai]. Mas dediquei meu tempo. Qualquer estrela, ou seja lá o que for, em que você se encaixa… e não vou citar nomes, mas muitas delas tiveram problemas com os filhos — seja se suicidando ou de várias outras maneiras… Eu não acredito nessa história de qualidade em vez de quantidade. Eu não quero passar a imagem de alguém que sabe tudo sobre… ninguém sabe tudo sobre crianças.
A gente aprende por inércia, de certa forma. Já cometi muitos erros, mas fazer o quê? Acho que é melhor para ele me ver como eu sou. Se estou mal-humorado, estou. Se não estou, não estou. Se quero brincar, brinco. Se não quero, não brinco. Não me curvo a ele. Sou o mais sincero possível com ele. E sim, posso me dar ao luxo de dedicar esse tempo. Mas qualquer pessoa com um parceiro ou parceira que trabalha fora talvez consiga dedicar esse tempo.
Eu não acredito nessa história de “minha carreira é tão importante que eu lido com os filhos depois”. O que eu já fiz com meu primeiro casamento e meu primeiro filho [Julian] — e meio que me arrependo. Agora ele e eu temos problemas.”
Me deu uma vontade repentina. De repente, tive uma espécie de… se me permitem a expressão… “diarreia” de criatividade. Fomos para o estúdio e gravamos cerca de 22 faixas, reduzindo para 14. Eram todas canções de diálogo, o que significa que estávamos compondo como se fosse uma peça de teatro e fôssemos dois personagens nela. É a vida real — mas também não é totalmente real, porque em uma música ou em um disco não pode ser totalmente real.
Quer dizer, poderíamos ter ido além e feito este disco de forma que talvez ela se chamasse Ziggy Stardust [personagem criado e incorporado por David Bowie] e eu me chamasse Tommy [personagem central do álbum homônimo de ópera-rock da banda The Who]. Mas sempre trabalhamos a partir de nós mesmos. O que cantamos no disco são verdadeiros diários de como nos sentimos.
De repente, eu tinha todo esse material. Depois de não tentar de verdade por cinco anos. Eu estava tão preso ao ambiente doméstico e mudei completamente minha maneira de pensar que eu realmente não pensava em música. Meu violão estava meio que pendurado atrás da cama — literalmente. E acho que não o tirei de lá em cinco anos.”
“Só existem dois artistas com quem já trabalhei por mais de uma noite, por assim dizer: Paul McCartney e Yoko Ono. Paul me conheceu no primeiro dia em que toquei “Be-Bop-A-Lu-La” ao vivo no palco [6 de julho de 1957], E um amigo em comum o trouxe para ver meu grupo, chamado The Quarrymen. Nos conhecemos, conversamos depois do show e eu vi que ele tinha talento. Ele estava tocando guitarra nos bastidores, fazendo uma versão de “Twenty-Flight Rock”, do Eddie Cochrane. E eu me virei para ele naquele mesmo instante, no primeiro encontro, e disse: “Você quer entrar para a banda?”.
Acho que ele disse “‘sim” no dia seguinte. O George [Harrison] veio por intermédio do Paul, e o Ringo [Star] veio por intermédio do George. Embora, claro, eu tenha tido alguma influência na escolha, a única pessoa que eu realmente escolhi como meu parceiro — alguém que eu reconheci que tinha talento e com quem eu me daria bem — foi o Paul.
Anos depois, eu conheci a Yoko e tive a mesma sensação. Era uma sensação diferente, mas, no fundo, a mesma. Então, acho que como olheiro de talentos me saí muito bem!”
Fontes: Beatles Archive e YouTube
Fonte: Gazeta do Povo
