Senado Aprova Proposta Que Define Marco Temporal para Terras Indígenas e Encaminha Texto À Câmara

Em uma decisão que reacende o debate sobre os direitos dos povos originários no Brasil, o Senado Federal aprovou em dois turnos, nesta semana, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O projeto, que fixa a data de 5 de outubro de 1988 como critério para o reconhecimento dessas áreas, obteve 52 votos favoráveis em ambas as votações realizadas no plenário da casa legislativa. A matéria agora segue para análise e votação na Câmara dos Deputados, etapa crucial para sua eventual promulgação e inclusão na Constituição Brasileira.

A aprovação da PEC no Senado representa uma vitória significativa para o setor do agronegócio e para parlamentares da bancada ruralista, que argumentam em favor da segurança jurídica para proprietários rurais e do desenvolvimento econômico. Por outro lado, a medida é veementemente contestada por organizações indígenas, ambientalistas e defensores dos direitos humanos, que a consideram um retrocesso e uma violação dos direitos constitucionais dos povos originários, ameaçando a existência e a cultura de diversas comunidades.

O contexto e a controvérsia do marco temporal

A tese do marco temporal estipula que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse ou disputa comprovada em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Esta interpretação restritiva do Artigo 231 da Carta Magna tem sido a principal fonte de controvérsia. O referido artigo reconhece aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, definindo-as como “as habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

A origem da tese remonta a um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) de 2017, baseado em um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009. Na ocasião, o STF estabeleceu condicionantes para a demarcação daquela terra específica, e uma dessas condicionantes era a ocupação em 1988. Entretanto, a aplicação dessa tese a todas as terras indígenas do país é o ponto central da discórdia, pois muitos argumentam que as comunidades foram historicamente expulsas de suas terras antes de 1988, especialmente durante regimes autoritários e períodos de intensa colonização. Dessa forma, a exigência de posse física na data da promulgação constitucional ignoraria séculos de esbulho e violência.

A tramitação no senado e os argumentos em plenário

A proposta aprovada no Senado é uma versão da PEC que já havia sido amplamente debatida em comissões temáticas. Durante a votação em plenário, os senadores favoráveis enfatizaram a necessidade de conferir “segurança jurídica” ao campo, argumentando que a indefinição sobre as demarcações gera incertezas para produtores rurais e investidores. A senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura, foi uma das vozes proeminentes nesse grupo, defendendo que a legislação é fundamental para evitar conflitos agrários e promover a estabilidade no setor produtivo. Outros parlamentares do agronegócio ressaltaram a importância de garantir o direito de propriedade e a livre iniciativa.

Por outro lado, a bancada de oposição e senadores alinhados à pauta socioambiental manifestaram preocupação com os impactos da medida. O senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) e a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) argumentaram que a PEC viola direitos fundamentais e desconsidera o histórico de violências e deslocamentos forçados sofridos pelos povos indígenas. Eles apontaram que a aprovação da PEC contraria tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas e tribais. Além disso, destacaram o papel dos povos indígenas na preservação ambiental e na proteção da biodiversidade, essenciais para o equilíbrio climático global.

O embate com o supremo tribunal federal

Um dos aspectos mais complexos e delicados dessa discussão é o seu paralelo com o julgamento do mesmo tema pelo Supremo Tribunal Federal. O STF, em uma decisão de repercussão geral, já se manifestou sobre o marco temporal, rejeitando a tese em setembro de 2023. A maioria dos ministros do STF entendeu que a ocupação tradicional das terras indígenas não se limita à data de 1988 e que os direitos dos povos originários são anteriores à própria Constituição.

Essa divergência entre os poderes Legislativo e Judiciário cria um cenário de incerteza jurídica. Caso a PEC seja aprovada na Câmara e promulgada, teremos uma Emenda Constitucional que contradiz diretamente uma interpretação do STF sobre a Constituição. Especialistas em direito constitucional alertam para a possibilidade de um conflito de normas, podendo gerar novas ações judiciais e uma crise institucional. A promulgação de uma PEC é uma modificação do texto constitucional, enquanto a decisão do STF é uma interpretação do texto existente. A supremacia da Constituição, mesmo alterada por Emenda, versus a interpretação da Suprema Corte, será um tema de intensos debates e litígios.

Perspectivas na câmara dos deputados e potencial impacto

Com a aprovação no Senado, a PEC segue agora para a Câmara dos Deputados, onde enfrentará um novo ciclo de discussões e votações. Historicamente, a Câmara tem uma composição com forte representação da bancada ruralista, o que pode indicar um caminho favorável à aprovação da proposta. No entanto, a pressão de movimentos sociais e a recente decisão do STF podem influenciar o debate e a posição de alguns parlamentares. Serão necessários 3/5 dos votos dos deputados (308 de 513) em dois turnos para que a PEC seja finalmente promulgada.

O impacto da PEC do Marco Temporal, se promulgada, seria profundo. Estimativas de organizações indigenistas, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), indicam que centenas de processos de demarcação de terras indígenas seriam paralisados ou retrocederiam, afetando a garantia territorial de inúmeras comunidades. Isso não só agravaria os conflitos no campo, mas também colocaria em risco a sobrevivência física e cultural de diversos povos, muitos deles já vulneráveis. Além disso, a demarcação de terras indígenas é reconhecida como uma das mais eficazes barreiras contra o desmatamento, e a redução dessas áreas poderia ter consequências negativas para o meio ambiente e a luta contra as mudanças climáticas.

A sociedade brasileira acompanhará de perto os próximos capítulos dessa tramitação. A expectativa é de intensas mobilizações por parte dos povos indígenas e seus aliados, que prometem manter a vigília e a pressão sobre os parlamentares para que os direitos constitucionais sejam respeitados. A decisão final sobre a PEC do Marco Temporal não definirá apenas o futuro das terras indígenas, mas também a forma como o Brasil lida com sua história, sua diversidade e seus compromissos socioambientais no cenário global.


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